Trabalhar dentro da indústria de entretenimento adulto é sinônimo de ter atenção redobrada com a saúde. Sendo parte da parcela da população em estado de “vulnerabilidade” para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), o cuidado com o estado físico individual é essencial para se prezar tanto pela saúde de seus parceiros de trabalho quanto para a manutenção de sua própria saúde mental.
Enquanto em outras profissões, a “insalubridade”, que diz respeito ao nível de nocividade ao qual alguém está submetido em termos de saúde, é monitorada e atenuada por meio de legislações trabalhistas, no caso dos trabalhos sexuais, isso não acontece pela falta de uma regulamentação desses serviços. Seja nas ruas, nos vídeos junto a produtoras ou nas plataformas de conteúdo por assinatura, essa condição de abstenção do Estado deixa os profissionais do sexo vulneráveis a riscos físicos e emocionais.
Mayara Medeiros, diretora de filmes pornô, destaca a importância da checagem de saúde dos atores no processo de pré-produção: “A parte mais essencial que desenvolvemos em todos os projetos é o tempo que dedicamos para analisar exames de sangue. Ninguém entra em um projeto se a documentação não for aprovada”.
Sem vínculos profissionais com empresas do ramo (produtoras, revistas, etc.), cai sobre os trabalhadores a responsabilidade de monitorar a própria saúde física e emocional. No geral, as recomendações para um sexo seguro passam pelo uso de preservativos, porém, no caso dos produtores de conteúdo adulto, muitos não o utilizam, uma vez que o público prefere consumir vídeos desse tipo.
Nesses casos, Devlyn Picoloto Schil, farmacêutico especialista em saúde do adulto, ressalta que os profissionais do sexo devem fazer check-ups mensais ou bimestrais. Isso porque este é o período no qual as infecções podem ser detectadas – inclusive, em testes rápidos.
“[Essa cautela] é de suma importância, tanto por fins estéticos quanto pela minha própria saúde. Além do uso da PReP [Profilaxia Pré-Exposição], para prevenção do HIV [vírus da imunodeficiência humana], também faço um acompanhamento trimestral para rastrear outras possíveis ISTs. Querendo ou não, com o meu trabalho, eu acabo me colocando em situações de risco”, relata Gabriel Coimbra.
O HIV é um vírus responsável por causar a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids). A doença chegou a ser considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia no final do século XX. Segundo estimativas do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Unaids), cerca de 85,6 milhões de pessoas foram infectadas e 40,4 milhões delas morreram em decorrência da doença desde o início da crise até hoje.
Apesar de relacionados, é importante destacar que HIV e a aids são condições distintas. O HIV é um vírus que ataca as células T auxiliares, enfraquecendo o sistema imunológico, contudo pessoas infectadas com o HIV podem permanecer saudáveis por muitos anos. A aids é o estágio avançado da infecção por HIV, no qual o sistema imunológico está severamente comprometido e a pessoa fica vulnerável a várias infecções oportunistas e certos tipos de câncer. A progressão da infecção pelo HIV para a aids pode levar anos, e o tratamento antirretroviral (TAR) é eficaz em retardar esse processo, permitindo que as pessoas vivam uma vida mais longa e saudável.
Há décadas, porém, já existem no Brasil e no mundo pesquisas voltadas a entender o HIV e a aids. Além de aprofundar o conhecimento sobre suas causas e consequências, os estudos também têm promovido uma melhora no bem-estar das pessoas que convivem com esse agente patológico.
O governo brasileiro, por exemplo, adotou em 2017 a estratégia de prevenção combinada ao HIV. Para se obter o maior êxito no controle das infecções pelo vírus, o Ministério da Saúde recomenda, além do uso de preservativos externos e internos, outras medidas, que vão desde as testagens regulares até uso de medicações. Tratar outras ISTs, como hepatite A, B e HPV, por meio de vacinas, é outra tática de extrema importância, já que a presença de outros agentes infecciosos podem facilitar a transmissão do HIV.
A Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) também se destacam como estratégias revolucionárias, como explica Devlyn Picoloto. “Ambos os medicamentos são distribuídos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Nesse contexto, mesmo com as diversas informações que circulam amplamente sobre o assunto, ainda se vê um movimento de afastamento desses indivíduos. A desinformação é a principal causa dos preconceitos e estigmas. Por isso, Devlyn fundou a página “Tudo sobre HIV”, que busca trazer dicas, conteúdos e informações sobre ISTs, HIV, aids e sexualidade.
O diagnóstico precoce de pessoas vivendo com HIV também é indispensável. O tratamento feito com antirretrovirais torna a pessoa indetectável; em outras palavras, não há vírus em quantidade o suficiente para haver transmissão por meio das relações sexuais, garantindo a segurança.
Samuel Hodecker, produtor de conteúdo, usa a visibilidade que ganhou com a indústria pornográfica para advogar sobre os direitos daqueles que vivem com HIV. O ator descobriu que estava com o vírus da imunodeficiência humana em 2017, antes de começar a produzir conteúdo adulto.
“Fui forçado a tornar público que era HIV positivo. Uma pessoa da minha cidade descobriu e me chantageou dizendo que ia explanar para todo mundo. Eu nem me abalei, simplesmente peguei a medicação, tirei foto e postei no Twitter [X]”, relembra Samuel.
Após a decisão de retomar a própria narrativa, Samuel conta ter se sentido mais leve, além de ter recebido muito apoio dos seguidores. Mas nem tudo são flores, ele destaca que também sofreu com uma onda de comentários sorofóbicos e que associavam a infecção ao seu trabalho como produtor de conteúdo adulto.
Assim como a sexualidade e a identidade de gênero, a sorologia de uma pessoa é uma informação íntima e a decisão de compartilhar isso com os demais deveria partir dela mesma. Uma superexposição desse tipo pode ser prejudicial e afetar fortemente a sua saúde mental.
A plataformização do sexo oferece uma ilusão de segurança. As possibilidades de esconder o rosto, apagar a conta ou não interagir com os clientes podem parecer opções mais atrativas do que o trabalho presencial. Contudo, outros desafios acontecem na internet.
A Privacy, o OnlyFans, a 2Close e outras plataformas usadas para a comercialização do conteúdo adulto funcionam a partir de algoritmos que reconhecem as preferências do usuário, indicando conteúdos que possam lhe interessar. Porém, os algoritmos de todas as redes sociais tendem a privilegiar aquilo que é mais procurado e sugerir com mais frequência, levando os produtores à chamada “exaustão algorítmica”.
Cunhado pelas pesquisadoras brasileiras Issaaf Karhawi e Michelle Prazeres no artigo “Exaustão algorítmica: influenciadores digitais, trabalho de plataforma e saúde mental”, o termo deriva do conceito de “ansiedade algorítmica”, que se refere à sensação de angústia sofrida por usuários e influenciadores em relação às redes sociais.
“Exaustão algorítmica”, por outro lado, foca em um esgotamento com manifestações na saúde, socialização e produtividade, muito particulares dos influenciadores digitais. Apesar do termo não se referir especificamente às plataformas de conteúdo adulto, os trabalhadores dessas redes também estão suscetíveis aos seus efeitos, tal qual o burnout [esgotamento profissional].
Além de produzir fotos e vídeos para as plataformas de conteúdo erótico, esses profissionais também precisam fazer uma intensa divulgação para angariar assinantes. Com isso, são comuns sintomas de ansiedade de desempenho, pois eles se sentem pressionados a manter uma presença ativa nas redes sociais.
Essa condição coloca os trabalhadores em uma posição vulnerável à comparação constante com outros criadores de conteúdo adulto e à pressão para se destacarem. Isso pode levar a sentimentos de inadequação e autoestima prejudicada, potencializados pelos rankings das plataformas, em que os produtores competem pelo top 1.
Alexandre Diorio conta que as suas experiências com a internet trouxeram muitas oportunidades, mas também foram um desafio para a saúde mental. “Eu fui me comparando muito com os outros, tanto quem já tinha sucesso quanto quem estava pau a pau comigo”. Ele alerta que, para entrar nesse meio, é preciso ter maturidade para lidar com diversas questões.
É muito fácil misturar as coisas: rejeição e aceitação; sucesso e falha; ou erro e acerto,” desbafa Alê.
Para Gianluca Soares, doutorando em psicologia e servidor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as redes sociais frequentemente promovem padrões de beleza irreais e corpos "ideais". Não é incomum que produtores se sintam pressionados a atender esses padrões. A preocupação constante com a própria aparência é tanta que os leva a se submeterem a procedimentos estéticos e atitudes possivelmente prejudiciais à saúde.
“Muitos criadores acabam desenvolvendo bulimia e outros transtornos alimentares. Para ficarem com corpos mais ‘aceitáveis’, eles também costumam tomar bomba. Tudo para agradar ao algoritmo e às pessoas que o consomem” explica o especialista.
Mesmo branco, alto e magro, Samuel Hodecker chegou a levar para a terapia questões de dismorfia corporal após começar a produzir conteúdo para as plataformas digitais, buscando focar em sua saúde mental, Samuel escolheu fazer uma pausa na carreira no início do ano, mas já voltou a atividade. Sany Ferreira, por outro lado, sendo uma mulher negra e gorda precisou reafirmar sua auto-estima para continuar a trabalhar com o corpo:
A fala de Sany explicita a necessidade que essas profissionais têm de formar uma rede de apoio, o suporte de amigos, familiares e colegas dentro do próprio ramo pornográfico, além do acompanhamento psicológico.