A objetificação do corpo feminino não é fruto do trabalho sexual, muito menos da internet. Historicamente, as mulheres foram colocadas à margem da sociedade, sem direitos políticos, a elas restava apenas uma opção: servir aos homens.
Carolina Bonomi, doutoranda em ciências sociais, lembra que as relações entre os sexos, feminino e masculino, que objetificam as mulheres foram estabelecidas muito antes do trabalho sexual e da chegada das plataformas de conteúdo adulto: “Há anos, as mulheres fazem trabalho doméstico de graça; há anos, as mulheres recebem menos que os homens; e há anos, a indústria do marketing explora o corpo e a imagem das mulheres para vender mais”.
Responsáveis por cuidar da família e ser objeto de prazer masculino, deixando de lado o seu próprio prazer, as mulheres sempre tiveram que seguir diversas normas sociais criadas para controlar os seus comportamentos, principalmente aqueles relacionados à sua sexualidade.
Aquelas que saíssem dos padrões estabelecidos e atendessem aos seus desejos sexuais eram – e são – vistas como “profanas”. Uma mulher honesta deveria zelar pela sua imagem na sociedade e seguir o principal papel dado a ela, o de submissa.
Enquanto a mulher é incentivada a ser “mulher para casar” e buscar o amor ideal, por outro lado, aos homens cabe o papel de dominador. Motivados a descobrirem e a exercerem a sua masculinidade, eles buscam conhecer seu corpo e ter o prazer facilmente.
Essa construção de subalternidade da mulher em relação ao homem determinou as regras sociais que deveriam ser seguidas ao exercerem sua sexualidade, o que se refletiu nas formas de produção de conteúdo da indústria pornográfica e no perfil do público consumidor. Nesse mercado, a maioria dos conteúdos produzidos são feitos para agradar ao homem, especificamente branco e cisgênero [aquele que se identifica com o sexo que lhe foi atribuído ao nascimento]. Visando atender aos desejos desse público, as produções são realizadas a partir da perspectiva daquilo que eles gostam e querem ver.
Para que o espectador masculino possa se projetar na cena, o posicionamento da câmera, bem como os ângulos escolhidos buscam passar a sensação de que o personagem com que eles se identificam é o dominador. Por isso, as filmagens focam nas expressões faciais e nos movimentos corporais do objeto de desejo. O corpo em submissão ganha destaque para que o consumidor possa materializar a sua fantasia.
As imagens reforçam aos homens a ideia de sexo como arte do domínio. São comuns a realização de cenas marcadas por um ato sexual com intensidade exagerada em posições que o homem assume papel de autoridade e “possui” o outro corpo, satisfazendo assim os interesses masculinos.
Esse sentimento de posse também é recorrente nos clientes das produtoras de conteúdo quando têm contato direto com as criadoras através do chat. Essa ferramenta permite uma proximidade com o produtor e a possibilidade de ter alguns dos seus desejos atendidos.
Um dos fetiches dos usuários, por exemplo, é o webnamoro. Muitas pessoas pagam para que os criadores finjam ter um relacionamento mais íntimo com elas.
Os desejos podem se tornar obsessões. Alguns clientes começam a achar que têm algum tipo de controle sobre a produtora, e porque estão pagando, acreditam que elas têm que atender a todos os seus pedidos.
Amora [nome fictício] conta que para os seus clientes virtuais diz ser solteira, apesar de manter um relacionamento no mundo real. Ela explica o motivo que a levou a tomar essa decisão: “Os homens não querem ver conteúdo de uma mulher que namora. Eles querem que você seja exclusiva. Se souberem que você está beijando outra pessoa, param de assinar seu perfil”, relata.
Na indústria pornográfica tradicional, frequentemente, os corpos destacados são os das mulheres. Mayara Medeiros, diretora de filmes pornô, explica que isso acontece porque a maior parte do público é composta por homens héteros e existe uma demanda muito maior pelo consumo de corpos femininos. “Não existe tanta procura pelos corpos masculinos. Podemos repetir o mesmo ‘cara’ várias vezes nos filmes, mas, se repetirmos a mesma modelo, recebemos muita reclamação”, comenta.
Pela lei da oferta e procura, nesta indústria, as mulheres recebem mais que os homens. Para uma cena que resulte em um produto final que tenha cerca de 40 minutos, a base mínima de valores é a seguinte: eles ganham R$400 e elas podem ganhar R$600 (sem anal) ou R$800 (com anal). Os cachês variam a depender do nível de estrelato dos atores, do tamanho do projeto, do tempo de gravação das cenas e do resultado final do produto.
O mesmo acontece nas plataformas de vendas de conteúdo. A Privacy divulgou uma “lista de quem fez muito sucesso na plataforma em 2022”, ou seja, os perfis mais acessados e, consequentemente, mais lucrativos. O ranking é composto por sete nomes, todos são de mulheres. A descrição da produtora em primeiro lugar destaca seu retorno financeiro “A modelo deixou as polêmicas de lado e hoje fatura mais de R$500 mil por mês”, diz o texto.
Essa contradição na lógica do mercado deve-se à visão sobre as mulheres como um produto para consumo. Sua “valorização” é causada pela grande busca dos homens pelos seus corpos – que geram mais visualizações, têm uma exposição muito maior, são mais cobrados esteticamente e, por isso, tendem a ficar menos tempo nesse mercado; então, precisam ser aproveitados enquanto ainda estão disponíveis.
Ao mesmo tempo em que existe um grande desejo para que as mulheres atuem nessa indústria, quando elas se envolvem com a pornografia, são duramente atacadas e enfrentam diversas dificuldades para se colocar como profissionais. Luana Couto lembra que já foi vítima de muitas ofensas: “prostituta virtual, digna de pena, alma vazia.” Esses foram apenas alguns dos termos dirigidos a ela.
Ainda hoje, quando esses padrões comportamentais são rompidos e a mulher não segue as normas que a sociedade considera como aceitáveis, o de “bela, recatada e do lar”, elas são ainda mais inferiorizadas e alvos de comentários – de homens e também de outras mulheres – que tem o objetivo de diminuí-las.
Para as mulheres por trás das câmeras, também não é diferente. Com mais de dez anos de experiência nesse mercado e vivenciando seus desafios, Mayara conta que tem dificuldades para impor credibilidade e relevância nos trabalhos que desenvolve, uma dor comum entre as profissionais desse meio.
Independentemente da posição que ocupam, sejam atrizes, produtoras ou diretoras, elas estão suscetíveis a serem descredibilizadas e a passarem por algum tipo de constrangimento. Isso não acontece com a mesma frequência no caso dos homens.
Apesar do trabalho sexual ser condenado pela sociedade para ambos os sexos, as mulheres são atingidas em maior número pela rejeição e exclusão. Martina Oliveira recorda que foi demitida de uma empresa porque teve seu conteúdo vazado por um dos funcionários; essa foi a justificativa dada para o seu desligamento.
Quando a mulher tem a sua imagem vinculada ao trabalho sexual, seja ele realizado de maneira direta ou indireta, isso pode vir a se tornar um motivo para a perda de oportunidades em outros segmentos. Por não ser um serviço moralmente aceitável, elas acabam ficando “marcadas” ao desempenharem essa atividade.
A sociedade espera que as mulheres exerçam profissões que emanam maior zelo, como ser enfermeira, cuidadora ou professora. “Então, quando ela rompe com essas expectativas, isso causa um estranhamento e ela é vista como uma ‘pecadora’”, afirma a doutora em direito Alessandra Margotti. A especialista ainda critica as etiquetas impostas às mulheres, “é ridículo o pensamento de que elas não podem dispor de seus corpos da maneira como bem entenderem”.
O debate sobre a prostituição e outros trabalhos sexuais realizados por mulheres causam discordância até nos ideais defendidos pelos movimentos feministas. Podemos apontar duas vertentes:
Liberal: entende que existe a possibilidade de escolha autônoma, afirmando que pode ser uma fonte de diversão, emancipação e empoderamento, sendo a favor da prostituição como um trabalho.
Radical: entende que a prostituição e outras formas de trabalho sexual são uma condição criada pela sociedade patriarcal, que explora e prejudica as mulheres e que, portanto, têm que acabar.
O tempo que permanecerem nesse meio não importa. Uma vez atuante no mercado sexual, as mulheres serão sempre lembradas por isso. Mia Khalifa, uma das atrizes mais famosas do gênero adulto no mundo, esteve nesta indústria por apenas três meses e gravou 11 vídeos. Mesmo tendo deixado a pornografia há quase dez anos, ela continua sendo uma das mulheres mais pesquisadas em sites pornográficos.
Hoje, através das redes sociais, nas quais possui milhões de seguidores, ela tenta renovar a sua imagem. Mas fotos e vídeos de seus trabalhos daquela época ainda são compartilhados com frequência. Mia afirmou diversas vezes que não concorda com as divulgações, tanto que, em sua página do OnlyFans ela compartilha fotos sensuais, sem ficar nua, e deixa um alerta: "Este é o único site em que você pode encontrar conteúdo que eu concordo em publicar".
Em 2019, em entrevista à BBC, Mia Khalifa disse que entrou nessa indústria por pensar que ninguém descobriria. “Eu achei que pudesse fazer do pornô o meu segredinho sacana, mas o tiro saiu pela culatra”, desabafou.
O medo de ser descoberta neste trabalho é comum entre as mulheres. A preocupação com os julgamentos levam algumas produtoras a esconderem as suas identidades, porém, manter-se no anonimato não é fácil.
Para as mulheres, normalmente, esse trabalho se torna a fonte de renda principal, enquanto para os homens é um complemento. Por isso, elas acabam ficando muito mais expostas e, quando tentam desvincular a sua imagem dessa indústria, encontram diversas dificuldades.
A tentativa de encontrar uma nova área de atuação pode ser frustrante devido aos preconceitos e à carga moral negativa que a sociedade conservadora impõe sobre todos os trabalhos relacionados ao sexo. Moral essa que, segundo Lorena Caminhas, pesquisadora de estudos de gênero e pós-doutoranda na Universidade de São Paulo (USP), “muitas vezes, pode soar hipócrita”.
Com o propósito de desmistificar a prostituição, Sany Ferreira busca trazer um discurso responsável para a sua classe: “Eu quero mostrar para as pessoas que as trabalhadoras sexuais também podem ter outras profissões. Elas podem ser advogadas, geneticistas, jornalistas ou psicólogas… Elas podem ser o que quiserem”.
Ela destaca que, eventualmente, os trabalhadores trocam de profissão e não são julgados por isso. O seu desejo é que o mesmo possa acontecer com as pessoas do ramo sexual, sem que essa parte de suas vidas seja tida como uma fase “obscura”, porque esse trabalho fez parte de suas histórias e é parte de quem são.