Ruas vazias, lojas fechadas e escritórios em silêncio. Bocas e narizes tapados por máscaras, o álcool em gel a postos na bolsa. Cantos da casa – outrora planejados para descanso, decoração ou lazer – ocupados provisoriamente por mesas e cadeiras de trabalho e estudo. Computadores, tablets e celulares utilizados como nunca antes na história; para tantos, era o único meio de interagir com o mundo aquém das janelas.
No dia 4 de fevereiro de 2020, o governo brasileiro decretou estado de emergência sanitária para o coronavírus. Pouco mais de um mês depois, no dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o perigo da situação e classificou a crise como uma pandemia.
Nesse contexto, com a finalidade de diminuir o contágio da doença, bem como para evitar que o Sistema Único de Saúde (SUS) ficasse ainda mais sobrecarregado, foram implementadas medidas de distanciamento social. Assim, grande parte da população se viu obrigada a ficar dentro de casa; enquanto alguns puderam aderir ao modelo de trabalho remoto, outros viram-se desempregados.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 2,7 milhões de pessoas foram afastadas de suas ocupações em razão do distanciamento social. Com isso, estima-se que 19,6% da população obteve um rendimento menor do que aquele recebido normalmente e 41% dos domicílios precisaram receber o auxílio emergencial para complementarem suas rendas.
Quando foi atingido pela Covid-19, o país ainda se recuperava do estado de recessão a que estava acometido desde 2014 por conta da crise financeira mundial de 2008. Depois de chegar ao pico de 13,9% de desempregados no início de 2017, o mercado mostrava sinais de recuperação, com a diminuição gradual da taxa de desocupação a cada novo trimestre.
A tendência era que a implementação das medidas de contenção dos gastos públicos, reforma tributária e flexibilização da política monetária estimulassem a retomada do crescimento no Brasil. Porém, com o início da pandemia, o que se viu foi um movimento contrário, de retorno às elevadas taxas de desemprego.
Dados da série histórica da PNAD Contínua evidenciam que, no último trimestre de 2019, o desemprego chegou a 11,1%, valor que não era atingido desde o primeiro trimestre de 2016. No trimestre seguinte, já com os primeiros casos de Covid-19 noticiados e a declaração de uma pandemia, a taxa de desocupação entre os brasileiros saltou para 12,4% e continuou a subir até atingir o seu pico histórico de 14,9% no terceiro trimestre de 2020.
O desemprego no Brasil só voltou a diminuir a partir do segundo trimestre de 2021. Não à toa, o período coincide com o início da campanha de vacinação contra o coronavírus. Com o aumento da imunização, as medidas de isolamento social foram, pouco a pouco, sendo afrouxadas e o mercado de trabalho voltou a ficar aquecido.
Segundo o último levantamento do IBGE (referente ao terceiro trimestre de 2023), hoje, o Brasil apresenta uma taxa de 7,7% de população desempregada, o que equivale a cerca de 8,3 milhões de pessoas. Um valor tão baixo não era alcançado desde fevereiro de 2015 (7,5%), no início da recessão.
Além do desemprego, outro efeito sentido no país foi a precarização dos trabalhos. Para Diego de Oliveira Souza, doutor em serviço social e professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), isso foi um dos reflexos da popularização e implementação compulsória do trabalho remoto – o qual se convencionou chamar de “home office”.
Em “As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19”, o autor defende que, considerando, sobretudo, as parcelas mais pobres da população, o Brasil não tinha, em 2020, as condições para assumir o teletrabalho como a modalidade única de ofício. Apesar disso, o levantamento da PNAD mostra que, logo no início da crise epidemiológica, 7,9 milhões de pessoas passaram a atuar sob o regime.
Nesse contexto, Souza destaca o cenário enfrentado por aqueles cujas atividades laborais estavam concentradas nas ruas, tais como entregadores e motoristas, “na linha de frente”. Muitos se viram entre a cruz e a espada: de um lado, trabalhar mesmo expostos; do outro, não trabalhar e perder o seu sustento.
Uma situação muito semelhante a essa também foi experienciada por profissionais atuantes dentro do mercado do sexo. E assim como se popularizou o home office em outras carreiras, plataformas de produção e consumo de conteúdo adulto personalizado possibilitaram a esses trabalhadores dar continuidade às suas atividades mesmo dentro de suas casas. Essa migração colocou o OnlyFans no mapa e abriu um novo leque de oportunidades de expansão para a indústria do sexo.
Segundo Lorena Caminhas, pesquisadora de estudos de gênero e pós-doutoranda na Universidade de São Paulo (USP), o trabalho sexual segue as mesmas tendências de mudança de outras profissões. “Há anos, o mercado de trabalho se aproximava da internet, criando uma dependência cada vez maior dela para atividades do dia a dia. Assim, o que a pandemia fez foi intensificar e acelerar esse processo”.
O OnlyFans, por exemplo, já existia desde 2016, embora só tenha “furado a bolha” e explodido a partir de 2020. Hoje, com mais de 220 milhões de usuários consumidores e 3 milhões de produtores, é a maior plataforma do tipo.
Por mais que seja popularmente conhecida pela pornografia, também é possível encontrar outros tipos de produções, que vão desde a gastronomia até a comédia. Sem publicidade, todo o valor arrecadado pela empresa deriva das assinaturas dos perfis.
Em ficha informativa enviada por sua assessoria, a empresa atesta que 80% do valor pago nas assinaturas dos perfis vai para os produtores, enquanto os outros 20% ficam com o OnlyFans. Entre 2016 e 2022, a plataforma indica que repassou cerca de US$10 bilhões aos seus colaboradores.
Durante a edição de 2022 do evento Web Summit, Amrapali Gan, CEO da empresa, descreveu o OnlyFans como uma “rede social sob assinatura”. Sem censura, a empresária destaca que, na plataforma, “os produtores podem monetizar conteúdo que seria compartilhado gratuitamente em outros espaços”.
Dessa forma, guardadas as devidas proporções, assim como os profissionais de escritório aderiram ao home office, os trabalhadores do sexo migraram para os sites de conteúdo adulto por assinatura. O uso de plataformas como o OnlyFans marcou uma reformulação do mercado sexual como era conhecido até então, inclusive, servindo como chamariz para a entrada de novos profissionais na indústria.
“Eu tinha acabado de ser demitido do meu trabalho e precisava pagar minhas contas. Foi assim que eu entrei no OnlyFans”, lembra o produtor de conteúdo adulto Samuel Hodecker. “No meu primeiro mês, fiz só US$12. As coisas começaram a melhorar financeiramente quando eu assumi o papel de ser meu próprio agente e passei a aplicar conhecimentos de outros trabalhos que tive, como marketing e edição, a esse novo serviço”.
Essa história não é única e restrita a Samuel. Muitos outros produtores viram nas plataformas digitais uma oportunidade de lucrar em meio ao conturbado contexto econômico da pandemia. Martina Oliveira, por exemplo, conta que o gatilho para começar a produzir conteúdo adulto na internet foi um assalto que sofreu.
“A minha ideia era vender alguns conteúdos até juntar dinheiro o suficiente para comprar um celular novo. Primeiro, eu abri um perfil na Privacy e depois comecei a fazer lives na Camera Prive. Naquela época, cheguei a ganhar R$200 por dia e, em uma semana, ganhei mais do que eu recebia como meu salário mensal em outros trabalhos”, aponta Martina.
Mesmo para quem já estava inserido no mercado sensual, as plataformas por assinaturas apareceram, sobretudo durante a pandemia, como uma forma de complemento de renda ou até ganha-pão principal. Esse foi o caso da apresentadora e modelo Núbia Óliiver: “Produzir para o OnlyFans me ajudou demais durante o isolamento, porque não apareciam outros trabalhos. Então, eu consegui me manter financeiramente confortável durante todo esse período”.
Mais do que os ganhos monetários, a segurança física e a comodidade também foram elementos apontados como benefícios das plataformas adultas, que explicam o seu crescimento no Brasil. Para Lorena, inclusive, o senso de proteção e a conveniência – tão caros no contexto da crise epidemiológica – não se limitavam aos produtores, estendendo essas vantagens também para o outro lado do negócio, isso é, os consumidores.
Dados do Pornhub Insights (iniciativa do próprio Pornhub que contabiliza os acessos à plataforma) demonstram que, a partir da veiculação dos primeiros casos de Covid-19, mais pessoas passaram a buscar por conteúdo pornográfico online. Na comparação com a média de tráfego do site em um contexto pré-pandêmico, ao longo do primeiro semestre de 2020, todo o globo apresentou um acréscimo mínimo de cerca de 10%, chegando à casa dos 20% em alguns dias.
Especificamente sobre Brasil, o levantamento apontou um movimento crescente de acesso ao Pornhub iniciado no final de março, justamente quando o país começou a aderir às medidas de distanciamento social. Para fins de comparação: em 8 de março, o tráfego havia sido de 5,2%; uma semana depois, no dia 15, esse valor já havia saltado para 9,7%; e, em três semanas (27 de março), o crescimento era equivalente a 26,2%.
Para Gabriela Almeida, doutora em comunicação e professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a maior procura por conteúdos eróticos na internet durante a pandemia pode ser explicada por “vários fatores”. Dentre os quais estão a “substituição” do sexo tradicional pelo consumo da pornografia e a consolidação do processo de “plataformização” da indústria de entretenimento adulto.
Mesmo depois do auge da pandemia e da retomada da vida fora do isolamento social, o Brasil permaneceu como uma das regiões mais consumidoras de pornografia no mundo. Segundo o relatório anual de 2022 do Pornhub, o país apresenta o décimo maior tráfego diário dentro do site.
Esse cenário é o mesmo no que diz respeito ao conteúdo erótico “personalizado” por assinatura. Além de formar um grande contingente de usuários – produtores e consumidores – no OnlyFans, os altos níveis de oferta e demanda estimularam a criação de plataformas propriamente nacionais, como é o caso da Privacy e da Camera Prive.
A Privacy é uma rede social bastante similar ao OnlyFans e, como esse, funciona a partir da divulgação e venda de conteúdos privados e exclusivos para os usuários em um sistema fechado de assinaturas pagas mensalmente. Sem a exigência de ter uma conta internacional para realizar os pagamentos (como acontece no OnlyFans), a plataforma tem crescido fortemente entre os produtores de conteúdo brasileiros.
Recentemente, inclusive, Martina Oliveira recebeu da empresa um prêmio de reconhecimento após ter conquistado um faturamento total equivalente a R$500 mil. Com mais de 33 mil assinantes ativos, a produtora está entre as maiores da plataforma, já tendo ocupado até a primeira posição do ranking.
A Camera Prive, por sua vez, é um serviço de camming, em que o público pode pagar para conversar durante alguns minutos com os produtores em lives. Além das chamadas ao vivo, a plataforma ainda dá acesso a vídeos e álbuns de fotos exclusivos.
“Diferentemente de outros países da América Latina, o Brasil tem uma indústria de plataformas [como a Privacy] dedicadas ao trabalho sexual que é basicamente único e que se compara a mercadorias internacionais. Nesse mercado emergente, temos plataformas para cams, publicação e distribuição de conteúdo por assinatura e até venda de packs com fotos e vídeos”, pondera Lorena Caminhas.
Justamente por conta do sexo representar, hoje, um dos grandes movimentadores econômicos, a pesquisadora critica a condição de “tabu” a que os trabalhos sexuais são atribuídos. “Ao mesmo tempo que construímos esse grande mercado, mantemos uma visão moralista e discriminatória sobre o negócio. Somos um país ambíguo e hipócrita”.
À discussão, Gianluca Soares, doutorando em psicologia e servidor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acrescenta que as plataformas de conteúdo adulto permitem a seus usuários uma maior facilidade em satisfazer os seus prazeres individuais. Isso tanto pela comodidade de buscar por fotos e vídeos eróticos na palma de suas mãos quanto pela diversidade de conteúdos ali encontrados.
“Nessas plataformas, há produtores dos mais diversos nichos, atendendo, assim, múltiplos públicos dentro do mercado sexual. Por lá, os consumidores podem assinar perfis de pessoas para atender suas fantasias, sem qualquer tipo de julgamento que poderia sofrer na vida fora da internet”. Soares exemplifica que não é incomum esbarrar nessas redes com conteúdos focados em fetiches não-convencionais, de teor homoerótico para homens casados ‘sigilosos’ ou de sexo desprotegido.
Na visão de Paulo Alexandre, a “personalização” e maior “intimidade” que as plataformas como o OnlyFans promovem nem sempre são positivas. Ele lembra que já sofreu assédio por parte de seus seguidores, sobretudo quando o encontram presencialmente. “Vivi situações em que as pessoas se sentiram na liberdade de passar as mãos ou falar certas coisas sem o meu consentimento”.
Gabriel Coimbra revela que também já passou por desconfortos ao ser reconhecido nas ruas de São Paulo: “Eu sempre tento ser o mais simpático que eu consigo ser naquele momento com as pessoas que me abordam e, normalmente, não ocorrem grandes problemas. Mas, às vezes, principalmente em lugares com muita gente, eu fico tímido e incomodado com os olhares que recebo quando alguém me reconhece, porque as pessoas literalmente passam a apontar e fazer comentários entre si”.
Apesar disso, os produtores reconhecem que esse “clima” de proximidade é uma via de mão dupla que pode ter, sim, seus aspectos positivos. Alexandre Diorio, por exemplo, conta que se sente acolhido pelos seus seguidores.
“Nada me dá mais força do que, quando eu estou em um dia ruim por conta da depressão, ouvir de alguém que o meu trabalho é importante. O contato com o meu público me faz redescobrir diariamente que eu tenho valor e muitas coisas que eu já ouvi na vida a meu respeito não são verdadeiras nem me representam”, relata. “O que eu faço é também uma troca e, assim como as pessoas estão abertas a falarem comigo, eu estou disposto a manter essa conversa com elas”.
De forma a conhecer um pouco sobre o perfil dos consumidores das plataformas adultas, das plataformas adultas, a redação Lucro no Tabu montou um formulário para identificar características sociais e comportamentais das pessoas que assinam ou já assinaram esse tipo de conteúdo. Durante o período de um mês que ficou aberto para o público, foram recebidas 111 respostas.
Do número total de respostas no formulário, apenas 15 (13,5%) delas diziam respeito a pessoas que, de fato, pagavam pelo conteúdo. Outros 31 (27,9%) respondentes afirmaram já ter consumido o material erótico publicado, mesmo sem pagar por ele, por meio de plataformas paralelas (tais como o X ou Telegram) e, em alguns casos, de forma ilegal, pela pirataria.
Dos 15 assinantes, 13 (86,7%) identificam-se como homens cisgêneros [aqueles que se reconhecem com o sexo atribuído ao nascimento]. Em relação à sexualidade, eram quatro (26,7%) homossexuais, quatro (26,7%) bissexuais e sete (46,7%) heterossexuais. Todos chegaram ao Ensino Superior, alguns ainda cursando (40%) e outros já tendo concluído (60%) – sendo que seis deles também se formaram em programas de pós-graduação.
Sobre o consumo do conteúdo pornográfico em si, na maioria dos casos, os assinantes responderam que entram nas plataformas em uma frequência diária (33,3%) ou semanal (40%) e seguem apenas um (40%) ou até três (40%) perfis. Duas pessoas afirmaram que consomem os materiais de quatro ou cinco produtores e outros dois respondentes indicaram assinar mais de seis perfis.
Já em relação aos gastos mensais com as fotos e vídeos, sete pessoas responderam pagar menos de R$100 e cinco alegaram já ter pago até R$50. Um único usuário indicou gastar mais do que essa média, com um teto de R$500 por mês.
Um dos assinantes respondentes do formulário concordou em ceder uma entrevista para compartilhar as suas percepções pessoais em anonimato. Homem cisgênero de 39 anos, ele consome semanalmente conteúdos do OnlyFans e da Privacy desde o início da pandemia, em março de 2020.
O primeiro contato que teve com as plataformas foi a partir de algumas amigas, que passaram a trabalhar produzindo conteúdo nelas. Segundo ele, o maior tempo dentro de casa e o seu interesse já prévio por esse mercado foram os fatores que o levaram a assinar o serviço.
Ao longo dos mais de três anos que está na plataforma, o consumidor já se inscreveu em mais de dez perfis e chegou a gastar mais de R$50 mensais para acessar esses conteúdos. Questionado se o conteúdo sexual desses canais era mais convencional ou específico, de forma a atender fantasias ou fetiches particulares, ele respondeu que gosta de conteúdo mais realistas: “Assino perfis de mulheres e casais que contam mais sobre o seu cotidiano e, assim, trazem como foco a sensualidade”.
Assim como outros assinantes que responderam ao formulário, este consumidor também já pensou em criar um perfil para vender conteúdos próprios, mas não chegou a seguir com a ideia. Sobre isso, ele afirmou que, com sua rotina de trabalho, faltou tempo; mas ele não descarta a hipótese de se tornar produtor em algum momento no futuro.
Na visão dele, o que torna o OnlyFans e a Privacy diferente de outros canais pornográficos, como as revistas ou sites (XVideos, Pornhub, etc.), é a maior ligação com quem produz o conteúdo. “Mesmo que nem sempre seja com a identidade real da pessoa, a interação com ela acaba gerando algum tipo de encanto e sensualidade que foge um pouco da pornografia tradicional”, conclui.